Fantásticas conexões
A formação do cérebro do bebê é uma jornada que se inicia ainda no útero e se prolonga pelo resto da vida
Poucos órgãos humanos são tão complexos e ao mesmo tempo tão delicados quanto o cérebro. Fascinante, é o centro processador das emoções, do pensamento, da maneira como cada um encara e responde ao mundo à sua volta. É por isso mesmo que, cada vez mais, a ciência se dedica a desvendá-lo. Essa empreitada envolve o desejo de esmiuçar o desenvolvimento cerebral desde os primeiros dias de vida intra-uterina. A partir da terceira semana de gestação, o cérebro já começa a ser formado, num processo de aprimoramento que permitirá o aprendizado até o final da vida.
As descobertas feitas até agora sobre o ritmo dessa viagem de crescimento e amadurecimento são fantásticas. De acordo com o neurologista infantil Mauro Muszkat, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 50% do desenvolvimento cerebral se dá até o primeiro ano de vida. “Por isso, os problemas que ocorrem com a gestante podem ter uma repercussão muito grande na formação do cérebro do feto”, explica. Os problemas a que o especialista se refere são principalmente o uso de drogas e de álcool, a desnutrição materna severa e a exposição à radiação. “Mães alcoólatras podem ter filhos com malformações cerebrais e faciais. Não sabemos qual é a quantidade de álcool capaz de afetar o embrião, nem o que significa abuso. É por essa razão que a Sociedade Americana de Pediatria recomenda que a gestante não tome bebidas alcoólicas durante a gravidez”, esclarece Luiz Celso Vilanova, chefe do setor de neurologia infantil da Unifesp. O cigarro não causa malformação. No entanto, filhos de fumantes costumam nascer com baixo peso, característica que deixa a criança mais suscetível a lesões cerebrais no momento do parto e implica menor resistência a infecções. O stress materno também parece ter impacto no desenvolvimento mental do bebê, conforme conclusão de pesquisadores do Centro Médico Universitário Utrecht, na Holanda. Os cientistas afirmam ser provável que os hormônios liberados pela mãe em situações de stress entrem na circulação do feto e prejudiquem o desenvolvimento cerebral.
Cronologia – O que também já se sabe é que a formação do cérebro segue um programa biológico, geneticamente determinado e que obedece a uma cronologia bastante precisa. Por isso, ainda dentro do ventre da mãe, o bebê já possui algumas capacidades. “Não temos condições de saber o que ele percebe dentro do útero. É certo que escuta os sons do organismo da mãe, como o sangue fluindo pelas veias, a respiração, a movimentação dos intestinos”, explica José Luiz Gherpelli, integrante da Associação Brasileira de Pediatria e especialista em neurologia infantil. O médico confirma ainda que, dentro do útero, os bebês sugam, deglutem, soluçam e fazem os movimentos respiratórios. O resultado desse mecanismo perfeito é que, quando o bebê vem ao mundo, já está habilitado para muitas coisas, embora não pareça. “A criança nasce com capacidade de ver, ouvir e de sentir cheiros e gostos”, diz o especialista.
E os mesmos processos pelos quais se dá a formação do órgão antes do nascimento produzem uma explosão de aprendizado logo depois do parto. Ao nascer, o cérebro de um bebê tem cerca de 100 bilhões de neurônios (células nervosas). O tronco cerebral, região que controla as funções vitais, como os batimentos cardíacos, já funciona perfeitamente. Além da pulsação e da respiração, o bebê consegue sugar, se assusta e reage aos sons e à luz. A partir do segundo mês de vida pós-natal, cada vez mais o cérebro vai ativando áreas responsáveis pela percepção sensorial do mundo. Ou seja, a criança começa a reagir de maneira mais instintiva aos estímulos visuais, por exemplo, acompanhando objetos coloridos. “A audição também começa a se desenvolver de forma mais ativa, tanto que a criança passa a ter reações diferentes aos sons, até o reconhecimento da voz do pai ou da mãe”, observa o neurologista Muszkat.
Controle – À medida que a criança se desenvolve, são criadas mais conexões (sinapses) entre os neurônios, as pontes pelas quais o aprendizado vai se fazendo e ficando armazenado na memória. O bebê, por exemplo, passa a relacionar seu corpo com aquilo que vê. Começa a criar “alças” sensório-motoras a partir do terceiro mês de vida, quando olha a mãozinha e a leva à boca ou tem uma atitude que não é mais somente de reflexo ao segurar o chocalho. Depois disso, a criança desenvolve maior controle motor do corpo, sustentando a cabeça e conseguindo se sentar por volta do sexto mês. No primeiro ano, o aumento das sinapses cerebrais também leva ao desenvolvimento da linguagem. Tanto que, aos 12 meses, os centros responsáveis pela fala costumam estar prontos. Esse aumento de atividade cerebral provoca ainda uma elevação do próprio metabolismo. Por volta dos dois anos, o cérebro de uma criança tem o dobro de sinapses – e consome duas vezes mais energia – que o de um adulto. Não é para menos. Por volta do terceiro aniversário, a criança deu um salto fantástico na compreensão do mundo. “Aos três anos, ela já representa o pensamento por meio de rabiscos, por exemplo, apesar de a parte motora ainda não estar completamente desenvolvida para conseguir expressar o que adquiriu sensorialmente”, explica Muszkat. De acordo com o médico, com seis ou sete anos ocorre um fenômeno muito importante: a lateralização das funções cerebrais, ou seja, a especialização de um lado do cérebro. A lateralização mostra que houve o amadurecimento cerebral para lidar com símbolos que tenham a ver com a linguagem, como as letras. Sinal de maturidade cerebral. Engana-se quem imagina que o desenvolvimento do órgão se encerra depois de tanta atividade. O cérebro dos pequenos vai continuar se desenvolvendo, criando novos circuitos de aprendizado e de memória até o final da vida.
Aprendizado - Estímulo com afeto
Há várias maneiras de ajudar as crianças a manter o cérebro em constante desenvolvimento. As brincadeiras, com ou sem brinquedos, são uma delas.
Enquanto os cuidados com a gestação garantem o bom desenvolvimento estrutural do cérebro, os estímulos oferecidos pelos pais após o nascimento do bebê são fundamentais para a formação das sinapses. “Quanto mais circuitos forem formados, mais ganhos a criança terá em relação ao aprendizado. O cérebro continua se formando e se desenvolvendo até a adolescência”, garante Celso Vilanova. Essa fase é considerada um marco para os neurologistas, porque é o período em que o indivíduo consegue criar pensamentos abstratos e consciência em regiões frontais do cérebro. Mas, para chegar até aí, o treino tem que começar cedo. Estudos científicos realizados na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, mostraram que crianças que passaram o primeiro ano de vida num berço não conseguiram sentar sozinhas com um ano e nove meses. Outra pesquisa, feita por cientistas do Baylor College of Medicine, também nos Estados Unidos, mostra que crianças que raramente brincam ou não são tocadas têm cérebros de 20% a 30% menores que o normal para sua idade. Prova de que o estímulo é essencial para o desenvolvimento em todos os sentidos.
E o que é o estímulo? Música, esportes, brincadeiras, jogos e conversas são ótimas maneiras de ajudar o filho a criar novos circuitos cerebrais. Só que, na opinião dos especialistas, o tipo de estímulo não é tão importante quanto a forma como ele é oferecido. “O afeto, o carinho e o vínculo com o filho devem vir junto com as brincadeiras. Sem contato e cumplicidade, nada funciona”, lembra Muszkat. Alguns pais acreditam que, ao colocar o filho na natação, no inglês, no futebol e na terapia, preenchem a falta de vínculos que a ausência de tempo provoca. Para o médico, o excesso de atividades pode ter uma repercussão negativa na motivação da criança. Elas ficam estressadas, deprimidas com tantos afazeres, quando na realidade queriam brincar. E é importante saber que, para desenvolver a capacidade cerebral de uma criança, também não são necessários recursos muito sofisticados. Segundo Muszkat, a tecnologia, os videogames, a internet criam indivíduos com habilidades mais rápidas nas funções sensório-motoras, mas não se pode afirmar que eles serão mais inteligentes por causa disso. “É preciso oferecer um desenvolvimento emocional e cultural que ajude a construir mais do que um cérebro”, afirma.
O processo do raciocínio
O raciocínio acontece por repetição e organização de padrões. Quando a criança afasta o chocalho, por exemplo, e percebe que ele se desloca, cria um esquema, uma representação do movimento sensório-motor. Depois, ela nota que pode atuar sobre o chocalho de uma maneira mais voluntária e desenvolve um novo esquema, brincando com o apetrecho. “A soma desses esquemas se agrega à sensação interna (se aquilo é bom ou ruim) e a criança vai aprendendo a raciocinar dessa forma”, explica Mauro Muszkat. O médico lembra que o processo de raciocínio envolve emoção. “O comportamento não existe sem uma motivação ou sensação de satisfação”, diz o neurologista